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Damas

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Joga, menino. Joga, menino. Joga, menino. Era isso que ele falava, entre uma pausa e outra, imposta pela asma que insistia em roubar-lhe o ar. Com uma voz rouca e suave, suas palavras não representavam pressa em acabar com o jogo. Pelo contrário, quando o assunto era jogar Damas com os netos, ele tinha todo o tempo do mundo. Ele tinha toda a paciência do mundo. Toda a ternura do mundo, ele portava consigo.

O que ele queria com aquilo, na verdade, era mesmo me desconcentrar. Eu não entrava na dele. Sabia que, para ter uma chance de vencê-lo, eu precisava estar muito atento. Mas confesso que isso nunca aconteceu. Com muito esforço, arranquei-lhe um empate certa vez. O que eu tinha de idade na época, ele tinha o dobro de experiência neste jogo. Vencer o "vô'' Adão no jogo de Damas? Mais fácil ir para a olimpíada remando.

O jogo de Damas em si não é muito complexo. Comparado ao Xadrez, seria como jogar apenas usando os peões. Mas ele jogava de uma forma tão incrível, que me fez enxergar muita beleza nesse jogo. Entregar-me uma peça para capturar três das minhas, era a sua jogada preferida. Eu ficava irritado, mas de nada adiantava. Sem perceber, ele estava me ensinando sobre a virtude da calma e da estratégia. Mesmo perdendo todas as partidas, eu aprendi a jogar muito bem. Me sentia como se fosse o vice-campeão mundial, porque o melhor do mundo estava diante de mim.

Joga, menino. Joga, menino. Joga, menino. Eu seguia jogando e aprendendo, até que um dia, o jogo acabou. A infância havia passado como um sopro. O vô Adão não estava mais sentado na minha frente, para jogar Damas comigo. As peças foram guardadas. Após a sua despedida, minha avó fez questão de me dar o tabuleiro. Um coliseu quadriculado de madeira, cenário de batalhas inesquecíveis. Guardei-o com carinho. Mas a vontade de jogar, confesso, já não foi mais a mesma. Os anos se passaram e dias atrás, algo surpreendente aconteceu. O tabuleiro, solitário que estava, foi parar nas mãos de uma criança. Eu havia deixado na estante, próximo aos brinquedos da Clara. Sem pensar duas vezes, quando o encontrou, ela foi logo ver do que se tratava. Quer jogar? Perguntei. Para o meu espanto, ela disse que sim. Tudo bem que não é um jogo difícil, mas ela tem apenas 5 anos.

Vamos tentar, começando pelo básico. A regra de pular uma casinha por vez e capturar a peça do oponente. Ela entendeu. Evoluímos para a parte em que uma peça sua chega no outro lado do tabuleiro. Essa peça ganha "superpoderes'', eu expliquei. Ela entendeu e achou muito divertida essa parte. "Quero superpoderes''. Conseguimos estabelecer uma partida. É lógico que, com jogadas bem simples. O objetivo não é propriamente vencer, mas aprender a jogar e se divertir. Até porque ela ainda tem "pena'' de capturar as minhas peças. As crianças e sua ternura inesgotável. Mas ela está aprendendo e, nos últimos dias, tem demonstrado cada vez mais interesse em jogar.

Joga, menina. Joga, menina. Joga, menina. Pensei comigo, mas não falei. Fiquei rindo sozinho ao lembrar. Muitas memórias afetivas foram ativadas aqui no meu peito. Tantas outras, novinhas em folha, estão sendo construídas na volta do tabuleiro quadriculado. Diferente das partidas com o meu avô, já deixei a Clara vencer várias. Quando ela crescer, não vou facilitar tanto. E o vô Adão, ah, ele que me aguarde! Um dia ainda vamos nos encontrar, eu irei vencer uma partida dele e me tornarei campeão mundial de Damas

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